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domingo, 9 de maio de 2010

Dialética, Diálogo e Conversa - parte III

Parte I - Parte II - Parte IV

5 - O Diálogo

O diálogo, segundo Paulo Freire, é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam e o transformam e, assim fazendo, humanizam o mundo para a humanização de todos (Freire, 2002b, p.43). Segundo esta concepção, o diálogo inclui, além da dimensão ética do encontro amoroso dos homens, o objeto do conhecimento - o mundo - que desafia e mediatiza a relação interpessoal e comunicativa.

Partindo dessa concepção freireana sobre o diálogo, procuraremos abordar a questão da ética, da linguagem e do conhecimento. Tendo em vista que no próximo tópico estaremos abordando “a Conversa”, uma categoria da epistemologia de Maturana, utilizaremos essas mesmas questões (ética, linguagem e conhecimento) para, com elas, apontar as consonâncias e as dissonâncias epistemológicas entre Paulo Freire e Humberto Maturana.

É importante ressaltar, como ponto de partida, que a ética tem um lugar muito especial no discurso e na práxis de Freire e de Maturana. Isto pode ser constatado pela conduta de ambos, tanto no que concerne à coerência entre o dizer e o fazer quanto ao respeito incondicional para com o outro, no que este termo tem de mais genérico e universal. Quando afirmamos as consonâncias de Freire e Maturana com relação à ética, não estamos tomando a ética como discurso filosófico e sim como conduta pautada por preocupações éticas. Essa conduta ética é tão impecável em Freire e Maturana que tanto a obra quanto a história de vida destes autores são comparadas a duas versões de um mesmo hino de exaltação ao ser humano.

As questões da linguagem e do conhecimento serão tratadas no bojo da discussão mais ampla sobre educação. Nesta perspectiva, Paulo freire mostrou que a educação deve promover a ampliação da visão de mundo e que isso só acontece através da relação dialógica. Não no monólogo daquele que, achando-se saber mais, transfere conhecimento para aquele que pensa saber menos ou nada saber. Assim, ser dialógico é vivenciar a educação como prática da liberdade. Educar, como diz Freire, em sua oralidade dialética, “é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais” (Freire, 2002b, p. 25).

A linguagem e a comunicação, assim como elas foram concebidas por Freire, implicam na compreensão do conteúdo sobre o qual os interlocutores estabelecem o diálogo. A comunicação eficiente exige que os sujeitos inter-comunicantes sejam capazes de manipular signos lingüísticos comuns ao universo de ambos. Não há, para Paulo Freire, relação comunicativa se os interlocutores não estabelecem entre si uma compreensão em torno da significação do signo ou dos signos (Freire, 2002b). É importante notar que a linguagem, nessa concepção, é apresentada como uma característica intrínseca do humano capaz de mediar, simbolicamente, as relações do homem com o mundo.
Há de se fazer aqui um contraponto entre Freire e Maturana com relação à linguagem, qual seja: enquanto Freire ainda assume o caráter mediador e simbólico desse fenômeno (Freire, 2002b), Maturana rompe com esse caráter e propõe um novo caminho explicativo para a linguagem, qual seja: uma coordenação de coordenação condutual consensual (Maturana 1989, 1997a). Aprofundaremos essa distinção para demarcarmos algumas fronteiras entre o pensamento de Freire e Maturana (embora essa distinção vá ter início neste tópico, o seu aprofundamento ocorrerá no tópico seguinte, com “A Conversa”).

Segundo Maturana, a linguagem é uma maneira dos indivíduos fluírem em interações recorrentes através das coordenações de coordenações condutuais consensuais (Maturana, 1989; 1997a). Partindo deste caminho explicativo, o autor nos faz três alertas com relação à linguagem: o primeiro é que a linguagem não tem lugar no corpo dos participantes, mas sim no espaço de coordenações recorrentes e consensuais de conduta. O segundo é que nenhuma conduta em particular constitui, por si só, um elemento da linguagem, mas é parte dela somente na medida em que pertencer a um fluir recursivo de coordenações consensuais de conduta. Por conseguinte, são palavras somente àqueles gestos, sons e posturas corporais que participam como elementos consensuais do fluir recursivo das coordenações consensuais de conduta que constituem a linguagem. O terceiro ressalta a capacidade do ser humano em fazer referência à história através das distinções e das recursões da linguagem com as quais e pelas quais surgem tanto o observar quanto o observador. Como diz Maturana "tudo que é dito é dito por um observador a outro observador, que pode ser ele mesmo. Um observador é um ser humano que pode fazer distinções e especificar o que ele distingue como uma unidade, como uma entidade diferente dele mesmo. Um observador pode fazer distinções em atos e pensamentos, recursivamente, e é capaz de operar como se fosse externo (distinto) à circunstância na qual ele se encontra” (Maturana, 1997).

Como pode ser constatado pelo leitor, tanto os símbolos quanto as representações saem de cena ao se aceitar o caminho explicativo proposto por Maturana. Saem os símbolos, porque os mesmos são construtos que surgem na relação com o outro e, portanto, não existem a priori. Sai a representação porque não precisamos lançar mão dela, nem no seu sentido semântico, nem no seu sentido epistemológico, para compreender a relação entre sujeitos falantes. Assim, por exemplo, ainda que possamos usar e aceitar, corriqueiramente, enunciados como se eles “representassem” um conjunto de condições ou de fatos, não precisamos aceitar que a linguagem funcione por meio de representação ou que existam fatos no mundo que sejam, per si, independentes da linguagem. Esse sentido semântico é pragmático e nós o usamos o tempo todo, despreocupadamente, sem nenhum compromisso epistemológico. O sentido epistemológico aparece, no entanto, quando generalizamos a noção semântica com vistas a construir uma teoria sobre como a linguagem funciona (Varela et al. 2003). Se isso ocorre, há de se assumir os compromissos epistemológicos inerentes a essa posição, quais sejam: o mundo é pré-determinado e suas características independem da biologia do sujeito que o pronuncia. Disso decorre que, dentro do paradigma hegemônico, não há outra maneira de explicar a relação entre a atividade cognitiva do sujeito que pronuncia o mundo predeterminado e a ele independente sem lançar mão da existência de representações mentais - imagens, símbolos ou padrões subsimbólicos de atividades sistemicamente distribuídas – pois são precisamente essas representações que possibilitam a mediação simbólica entre o sujeito e o mundo (Varela et al., 2003).

Uma outra noção que surge como uma conseqüência lógica da concepção representacionista da linguagem é a “correspondência”. É ela que garante o estatuto de verdade aos enunciados ao vincular os objetos do mundo - causas - às imagens mentais produzidas no sujeito – conseqüências. Como nos alerta Varela e colaboradores (2003), o problema não está em aceitar ou não o sentido epistemológico da representação, pois isso depende de nossas reflexões, conhecimento e convicções. O que não se deve fazer é passar da obviedade do sentido semântico da representação para o sentido “forte”, epistemológico, sem que se saiba que, com isso, está se aceitando também o compromisso epistemológico.

Tendo feito essa rápida abordagem sobre as concepções de Freire e Maturana com relação à linguagem, faremos agora alguns comentários sobre o fenômeno da cognição e do ato cognoscente, segundo a concepção freireana.

Para Paulo Freire, o verdadeiro ato cognoscente põe o sujeito numa posição perceptiva capaz de transformar o objeto do conhecimento de “ad-mirável” em “ad-mirado”. A mudança fundamental reside em que, no primeiro caso, o objeto permanece ao nível do “ad-mirável” frente à percepção do sujeito, como algo que ele se dá conta. A transformação - ou o conhecimento - se dá quando, delimitando o objeto como ad-mirável, o sujeito cognoscente penetra ou se adentra cada vez mais no ontos do objeto, transformando-o em “ad-mirado”. Na primeira hipótese, o sujeito terá do “ad-mirável” uma pura opinião – doxa - na segunda, um conhecimento – logos (Freire, 2002b).

Uma outra mudança qualitativa na passagem do “ad-mirável” ao “ad-mirado” é o estabelecimento da comunicabilidade entre sujeitos. Ou seja, o objeto “ad-mirado”, ou em processo de “ad-miração”, ao mediatizar a “ad-miração” dos sujeitos que sobre ele incidem uma reflexão, possibilita tanto a inteligibilidade (do objeto) quanto à comunicabilidade (entre os sujeitos). Dito de outra forma, sem realidade cognoscível – “ad-mirada” ou em processo de “ad-miração” – mediatizadora de sujeitos cognoscentes em torno do qual o conhecimento é dialogicamente produzido e compartilhado, não haveria inteligibilidade nem comunicabilidade. É por isso que a relação gnosiológica não encontra seu término no objeto conhecido, pois que, sem a relação comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível, não haveria ato cognoscitivo. Ou seja, o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. É por isso que não é possível compreender o pensamento fora de sua dupla função: cognoscitiva e comunicativa (Freire, 2002b).

Depreende-se desta dupla função que nenhum dos sujeitos da relação dialógica pode ser coisificado ou transformado num mero depositário do conteúdo do objeto sobre o qual se pensa. Se assim fosse – e quando assim é – não haveria a comunicação nem tampouco a inteligibilidade. Destarte, os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam e este comunicar, comunicando-se, é diálogo (Freire, 2002b).

Nesta perspectiva, a inteligibilidade e a comunicação se dão simultaneamente e, portanto, a produção do conhecimento não se reduz à pura relação sujeito cognoscente/objeto cognoscível, pois, se assim o fosse, romperia a estrutura dialógica em que a presença do outro se faz ontologicamente necessária. Partindo desse entendimento, Paulo Freire reiterou inúmeras vezes ao longo de sua obra o equívoco em conceber a educação como um mero ato de transmissão de informações e/ou de conhecimentos de quem sabe para quem, silenciado na ação educativa, é impedido de ser mais (Freire, 1969a, 1970, 1992, 1998, 2002b).

Ainda que Paulo Freire possa ter intuído os dois sentidos da representação, semântico e epistemológico, e demonstrado a importância do outro, fundado na relação comunicativa, ele não elaborou uma distinção que lhe permitisse explicar, seja no âmbito de sua concepção da linguagem, seja no âmbito de sua teoria do conhecimento, o que ele certamente intuiu e vivenciou: a impossibilidade de transferir conhecimentos no âmbito humano – o que ele denominou com a expressão “educação bancária” (Freire, 1969a, 1970, 1998).

Partiremos desse ponto para propor na “Conversa” os fundamentos biológicos que impossibilitam qualquer ser vivo, incluindo o Homo sapiens sapiens, de ser instruído, especificado ou determinado de fora, heteronomicamente.

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