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domingo, 9 de maio de 2010

Dialética, Diálogo e Conversa - Parte II

Parte I - Parte III - Parte IV

4- Paulo Freire e Humberto Maturana: consonâncias e dissonâncias

Embora Paulo Freire e Humberto Maturana tenham dialogado com uma lista enorme de autores ao longo de suas vidas, o nome de cada um deles não consta das suas respectivas listas. Isto pode ser explicado pelas diferentes áreas do conhecimento nas quais eles se dedicaram - educação e biologia, respectivamente. À parte isto, identificamos uma forte confluência, de natureza epistemológica, nos resultados que ambos chegaram e é precisamente essa confluência, mais do que os contrastes, que gostaríamos de ressaltar neste ensaio.

Imbuídos em promover um cum versare com Freire e Maturana, optamos por agrupar as consonâncias e as dissonâncias entre esses autores em três grandes categorias: a dialética, o diálogo e a conversa. A partir dessas categorias, abordaremos a questão do conhecimento, a autonomia do sujeito, a relação com o outro e o compromisso social. Embora estas questões estejam imbricadas entre si, faremos algumas distinções entre elas para nos tornarmos didáticos em nossa análise.

4.1 - A dialética

A palavra dialética pode assumir três sentidos principais, a saber: (a) arte do diálogo para atingir a verdade; (b) a concepção de que o mundo está em contínuo movimento por um processo que envolve a contradição e a luta de contrários (tese, antítese e síntese) (c) método de análise que procura evidenciar as contradições da realidade social e resolvê-las no curso do desenvolvimento histórico (Chauí, 2003).

Tendo em vista que o diálogo será tratado no próximo tópico, como uma importante categoria da epistemologia freireana, privilegiaremos nesse momento somente os sentidos advindos das doutrinas filosóficas de Hegel (sentido b) e de Marx (sentido c), nomes que tiveram grande influência sobre o pensamento de Freire.

Para Hegel, o processo racional é um processo dialético no qual a contradição não é considerada como um paradoxo lógico, mas como o verdadeiro motor do pensamento. Esse último é dinâmico porque procede através da superação das contradições, ou seja: partindo de uma tese (afirmação) e de sua antítese (negação), chega-se a uma síntese (a superação da contradição). Contudo, a superação alcançada na síntese é provisória na medida em que, ela própria, se transforma numa nova tese que já traz em si uma antítese, ou seja, uma contradição – motor do movimento dialético: a luta de contrários (Cury, 1989; Chauí, 2003).

Hegel utiliza então a dialética para reconciliação do homem com o mundo e para explicar o aparecimento do Estado. Assim, no primeiro caso, o homem (Espírito) nega-se como mundo, através da consciência, para afirmar-se como cultura. Ou seja, o Homem é mundo (tese) e o Homem é não-mundo (antítese), porque é Cultura (síntese). A reconciliação ocorre quando o Espírito reconhece-se como sujeito da produção de si mesmo: o Homem é mundo e cultura, porque é Espírito (Chauí, 2003).

Para Hegel, apoiado em sua filosofia do direito, o Estado surge como o grande conciliador. Ou seja, somente o Estado é capaz de exprimir a vontade geral expressa a partir dos particularismos e das singularidades das instituições da sociedade civil. O Estado pode garantir a ordem, a paz, a liberdade e a perfeição do Espírito humano porque ele pode, através do direito, conciliar os conflitos advindos dos particularismos (Chauí, 2003).

Para Marx, Hegel trata a dialética idealmente, no plano do Espírito, enquanto o mundo dos homens exige sua materialização. A dialética marxista considera a matéria como sendo a única realidade, negando qualquer forma de transcendência - espírito, alma, deus, etc. Maior do que qualquer essência é a existência, ou seja, a construção da história. O Homem constrói a história e é produto desta mesma construção. A base econômica (infra-estrutura econômica) determina, em última instância, a superestrutura jurídica, política e ideológica e, portanto, o próprio homem. Esse homem, determinado a partir das relações sociais em que se encontra, produz o seu próprio ambiente. No entanto, esta produção da existência não é de livre escolha, mas historicamente determinada pelas condições sócio-econômicas. O modo de produção constitui a base do regime social e determina o seu caráter, a forma de organização da sociedade e a própria consciência humana. Na busca de um caminho epistemológico que pudesse interpretar a realidade social e até mesmo transformá-la, Marx conferiu à dialética um caráter materialista e histórico. Se o mundo é dialético - se movimenta e é contraditório - é preciso um Método que possa interpretá-lo, que consiga servir de instrumento para a sua compreensão. Este instrumento lógico é o Método dialético, afirmou Marx. Haveria, segundo a concepção marxista, uma permanente dialética das forças entre opressores e oprimidos e esta dialética, materializada na permanente luta de classes, é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético (Marx, 1844; Cury, 1989; Chauí, 2003).

4.1.1 - Paulo Freire frente à dialética

As dialéticas de Hegel e de Marx influenciaram muito o pensamento de Paulo Freire, especialmente em sua práxis educativa. Assim, para esse último, a educação é entendida como um processo que deve, necessariamente, levar o indivíduo a reconhecer não só a sua condição de indivíduo no mundo, mas, também, a sua condição de agente que cria o mundo. Chega-se a esse duplo reconhecimento através do movimento das contradições internas entre a razão e o mundo material e das condições materiais do mundo em que a razão existe.

Segundo essa concepção freireana, o ato de leitura não pode estar dissociado da leitura do mundo e não se trata apenas de ler e conhecer as coisas do mundo, mas, efetivamente, o de transformá-lo – o que inscreve a educação como prática da liberdade. Freire compreendeu, no entanto, os limites da educação para operar o processo de mudança em condições objetivas desfavoráveis, razão pela qual direcionou a sua atenção para dois importantes focos: o conflito e a esperança (Freire, 1969, 1970, 1992).

“Não é possível compreender a vida social fora da existência dos antagonismos, fora da existência dos conflitos”. Se ganha consciência nos conflitos, pois, com eles, o homem se transforma, se educa e se reeduca (Blois, 2005).

É possível assumir um sentido amplo para o termo conflito e incorporar a ele a noção de problema, de situação problemática ou desafiadora. Dito isto, pode-se afirmar que, para Paulo Freire, “não há vida sem conflitos” e, no âmbito humano, são os conflitos e os problemas que, ao desafiarem o homem em sua relação com o mundo, desencadeiam nele o que nós conotamos como consciência ou estado de consciência. É importante ressaltar que essa consciência não se dá de forma automática sempre que o indivíduo estiver diante de um conflito. No entanto, pode-se facilitar o desencadeamento da mesma através da problematização. Isso explicaria a insistência de Freire para a importância dos educadores-educandos se predisporem, junto aos seus educandos-educadores, a uma problematização sistemática e permanente, pois, como dizia ele: “a problematização é a tal ponto dialética que seria impossível alguém estabelecê-la sem comprometer-se com o seu processo” (Freire, 2002b, p. 82).

É importante ressaltar que não foram as leituras de Marx que levaram Freire a se aproximar dos oprimidos e a se comprometer contra as injustiças, mas, efetivamente o contrário. Assim ele nos explica: “as pessoas nunca me disseram: Paulo, por favor, por que você não lê Marx? Não. As pessoas nunca me disseram isso, mas a realidade me dizia isso. [...] Daí eu comecei a ler Marx e a ler sobre Marx e quanto mais o fazia mais me convencia de que nós realmente teríamos que mudar as estruturas da realidade, que deveríamos comprometer-nos totalmente com um processo global de transformação” (Freire & Horton, 2003, p. 227; Blois, 2005).

A trinômia consciência-mundo-transformação não se completa somente com a consciência do mundo. Pois, da mesma forma “como o ciclo gnosiológico não termina na etapa da aquisição do conhecimento existente, pois que se prolonga até a fase da criação do novo conhecimento, a conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade” (Freire, 1992, p.103). A conscientização sem transformação é um puro palavreado, pois as relações inerentes ao trinômio consciência-mundo-transformação não se completam, ou seja, se o que se diz que muda é a consciência torna-se explicito, desta forma, que o mundo, ele mesmo, é intocado (Freire, 1992).

A relação entre conflito e esperança pode ser intermediada pela consciência do sujeito. Ou seja, o conflito pode desencadear a consciência no homem e este, através da consciência, sabendo-se biológica e historicamente inacabado, busca, através de sua vocação ontológica, o ser mais – fonte e alicerce da esperança. É por isso que o contrário da esperança - a desesperança - negando o ser mais, imobiliza e faz sucumbir o sujeito. Ou seja, quem da desesperança padece cai, geralmente, no fatalismo onde não é possível mobilizar as forças indispensáveis ao embate de recriação do mundo (Freire, 1992).

Paulo Freire nos alerta, no entanto, que a esperança sozinha não transforma o mundo. Atuar movido por tal ingenuidade pode levar também ao pessimismo e ao fatalismo. Por outro lado, não se pode prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, haja vista que esta luta de libertação tem sempre um suporte ético (Freire, 1992).

Um outro alerta de Paulo Freire aponta que a esperança, enquanto necessidade ontológica, precisa ancorar-se na prática para tornar-se um inédito viável e, quiçá, uma realidade histórica. É por isso que “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero” (Freire, 1992, p. 11).

Se aceitarmos que a consciência do inacabamento produz o ser de esperança, devemos aceitar, por necessidade lógica, que ao ser de esperança está negado qualquer determinismo. Expandiremos esse argumento para demonstrar a autonomia do pensamento de Paulo Freire frente ao marxismo, pelo menos para aquele de matiz mecanicista.
Como ponto de partida do nosso argumento, citaremos a contradição entre determinismo e o que Paulo Freire concebe como sendo características ontológicas do humano: esperança e ética. A contradição pode ser assim explicitada: se o homem é produto de determinação social (cultural ou de classe), ele é irresponsável pelo que faz em seu mover-se no mundo. Aceitar essa irresponsabilidade humana, determinada heteronomicamente, implica em não mais poder falar em esperança, ética, nem tampouco em liberdade e autonomia.

Assim, apoiado pela sua própria práxis educativa, Freire nunca aceitou qualquer forma de determinismo (genético ou cultural), nem a conseqüência lógica do mesmo – a irresponsabilidade humana. A posição do autor pode ser assim ilustrada: “nos momentos mais desafiadores da trajetória humana, irrompe sempre o inédito viável como uma luz no fim do túnel, provocando e convocando os humanos a não se sucumbirem à tentação de quaisquer determinismos”. E continua, “esse negócio de determinar, de decretar o desaparecimento do sistema capitalista porque a fase posterior é o socialismo, é imobilismo de esquerda, é fatalismo libertador, é um fatalismo ao revés” (Blois, 2005). Freire reitera isso em vários de seus textos e de várias maneiras mostrando sempre que “a história é tempo de possibilidade e não de determinismo e que o futuro é problemático, mas não inexorável” (Freire, 1992; Blois, 2005).

Um outro ponto de divergência de Paulo Freire com o mecanicismo de certas ortodoxias marxistas é a sua crença em Deus. O autor advoga que “num processo de mudança radical de qualquer sociedade, há de se dar o direito às pessoas de acreditarem ou não em Deus. Ou em nada. Ou no que quer que seja” (Blois, 2005, p.50). Isso não dá o direito, no entanto, “às religiões que tentam atrapalhar a reivindicação dos direitos legítimos das massas populares em nome de Deus, pedindo paciência àqueles que não comem e prometendo para estes o Reino dos Céus” (Blois, 2005, p.50).

4.1.2 – Humberto Maturana frente à dialética

Diferentemente de Freire, Humberto Maturana não faz referência à dialética em seus textos nem utilizou a mesma como ferramenta para construir o arcabouço teórico da Biologia do Conhecer. Isso não impede que possamos, no entanto, identificar oposições dialéticas no corpo de conhecimentos produzidos pelo autor.

Assim, para exemplificar o que foi dito e tornar mais claro o nosso argumento, reinterpretaremos, à luz da dialética, um dos problemas abordados pela Biologia do Conhecer - a autonomia do vivo e seu acoplamento estrutural com o mundo. Para melhor compreensão dos nossos leitores, particularmente daqueles que não estão muito afeitos com a obra de Maturana, resumiremos a questão da autonomia do vivo e de seu acoplamento estrutural com o mundo, conforme estas questões nos são apresentadas pela Biologia do Conhecer (Maturana 1997a, 1997b; Maturana & Varela, 1995).

Acreditamos que um dos momentos cruciais da ruptura de Maturana com o pensamento biológico tradicional se deu quando o autor aceitou a pergunta formulada por um de seus estudantes, qual seja: o que é um ser vivo?

Cônscio que toda pergunta que pede uma explicação exige como resposta um mecanismo gerativo, Maturana, ao invés de propor as tradicionais características dos seres vivos, propôs, depois de muita reflexão, um mecanismo gerativo para a fenomenologia do vivo e do viver. Segundo esse caminho explicativo, o vivo é uma unidade submetida a uma lógica circular de produção dos seus componentes de produção. Dito de outra maneira, o vivo é uma rede molecular de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma continuamente e, ao mesmo tempo, especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza – sua topologia no espaço (Maturana & Varela, 1995). A especificidade desse auto-engendramento é garantida por um processo interno de produção não seqüencial e não hierárquico de tal forma que o que se produz é o próprio produtor, numa relação inseparável entre ser e fazer. A esse processo de auto-criação o autor denominou de autopoiesis (auto=próprio; poieis=criação). Ao descrever esse mecanismo gerativo comum a todos os seres vivos, o autor apontou para a existência de uma organização mínima que qualquer estrutura viva deve respeitar. Ou seja, uma condição sine qua non para a realização do vivo é a manutenção de sua organização autopoiética, embora esta mesma organização possa ser realizada por diferentes estruturas, por diferentes estratégias moleculares e por diferentes biomoléculas (Maturana, 1997a, 1997b, 2001; Maturana & Varela, 1995; Andrade & Silva, 2003).

Há um ponto fundamental, apontado pela Biologia do Conhecer, que deve ser aqui ressaltado, qual seja, para que a vida se realize, duas condições interdependentes devem ser satisfeitas: (a) ocorrência de uma dinâmica autopoiética em uma unidade e (b) o acoplamento estrutural desta unidade ao mundo. Assim, os organismos que perdem a dinâmica autopoiética ou o acoplamento estrutural com o seu mundo, se desintegram e morrem. Este processo de acoplamento estrutural do vivo com o mundo, que já perdura, pelo menos, 3,8 oito bilhões de anos (Andrade & Silva, 2003) foi denominado por Maturana de “Co-deriva Natural” (Maturana & MPodozis, 1992).
Acreditamos que a co-deriva natural entre o vivo e o mundo possa ser reinterpretada à luz da dialética como um par de opostos que se dialetizam. Destarte, o vivo é mundo (tese) e o vivo é não-mundo (antítese). Ou seja, o vivo é mundo, na medida em que os elementos que o constituem são partes integrantes do mundo e, além disso, sua organização sistêmica não pode se contrapor, radical e bruscamente, às mudanças do mundo, sob pena de destruição. Por outro lado, o vivo é não-mundo, na medida em que ele é um sistema autônomo e, portanto, não pode se homogeneizar, brusca e radicalmente, com o mundo, sob pena de perda de sua organização autopoiética e, por conseguinte, sua destruição.

O acoplamento estrutural do vivo com o mundo, traduzido pela capacidade do vivo em se manter próximo e congruente com o meio (o mesmo) e, ao mesmo tempo, afastado e não homogêneo com o meio (o outro) é, a nosso ver, mantido pelo movimento dialético. Unidades autopoiéticas que negam o mesmo do seu mundo, tornando-se incongruentes a ele, podem, no limite, serem destruídas. Do mesmo modo, os sistemas vivos que, perdendo a dinâmica autopoiética, se homogeneízam totalmente com o meio, também são destruídos. Somente as unidades que são capazes de manter a co-deriva natural com o seu meio (Maturana & MPodozis, 1992; Maturana & Varela, 1995) ou, do nosso ponto de vista, sustentar a dialética do mesmo e do outro (Andrade et al. 2002, Andrade & Silva, 2003), permanecem autopoiéticas e, portanto, vivas.

Se em Hegel a cultura surge como superação da tensão dialética homem-mundo, com o presente superando o passado, pelo o que na cultura se fez, e o futuro superando o presente, pelo que na cultura se faz, advogamos, como um primeiro recorte, que a cognição é a síntese da superação da tensão dialética entre o fluxo do viver individual - qualquer que seja ele - e o mundo. Se o recorte feito pelo observador apontar o conjunto das trajetórias de vidas das espécies na seta do tempo, e não o fluxo do viver individual, a evolução assume esse lugar de síntese.

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